Decidi partilhar a minha leitura de “Mestre Grilo Cantava e a Giganta Dormia”, da autoria de Aquilino Ribeiro por ser uma das obras que mais gostei de leccionar enquanto docente de Língua Portuguesa.
Trata-se de um conto infantil pertencente à obra Arca de Noé, III Classe. Apesar de ser um conto infantil, cativou-me pela linguagem de cariz popular utilizada pelo autor e pelo complexo enredo que movimenta as personagens. Estas são suficientemente simples para apaixonar as crianças e complexas o suficiente para agradar aos adultos. O que mais me agrada neste conto é a escrita simples e marcadamente popular de Aquilino Ribeiro e os traços de personalidade distintos que assumem as diferentes personagens no decorrer da acção. Considero que os contos infantis não se destinam exclusivamente às crianças, pois o mundo da fantasia e os ensinamentos neles contidos também são do agrado do leitor adulto.
O autor:
Aquilino Ribeiro nasceu na Beira Alta, em 1885, e morreu em Lisboa, em 1963. É considerado um dos maiores ficcionistas portugueses. Estreou-se com um livro de contos intitulado Jardim das Tormentas. De entre as suas obras, merecem destaque O Malhadinhas, A Casa Grande de Romarigães e Quando os Lobos Uivam. Revelou ser profundo conhecedor tanto da linguagem rústica como da citadina. Escreveu, em 1935, o livro de contos Arca de Noé, III Classe, de onde foi extraído o conto “Mestre Grilo Cantava e a Giganta Dormia”. Mas este não foi o único conto que dedicou às crianças. Já em 1924, escrevera o Romance da Raposa e, em 1962, publicou O Livro de Marianinha, em homenagem à sua neta.
Resumo do conto:
Na fazenda do Senhor José Barnabé Pé de Jacaré vivia uma flor grande e linda que, com o seu perfume suave e a sua cor viva, atraía abelhas, grilos, ralos e cigarras. Seduzidos pelo brilho e pela sombra da flor, os insectos construíam o seu lar próximo da flor da aboboreira, rendidos à sua beleza. Mestre Grilo, um grilinho com ar vivaço e alma de poeta, apaixonara-se pelo local e, cativado pela bela flor da aboboreira, ali perto fizera a sua lura.
Ora, com o tempo, a flor murchara e, no seu pedúnculo, começou a crescer uma abóbora menina, muito redondinha. Estava-se no início do Verão e, à força de tanto dormir, a abóbora crescia, crescia, crescia…
Certa noite, a abóbora acordou com a algazarra de uma festa. Pôs-se à escuta e ouviu um coro de vozes bem-dispostas a chamar pelo Sol. Eram as rãs do charco, as cigarras, Mestre Grilo, os sapos, entre outros. A abóbora, cuja missão na vida era dormir e crescer, indignou-se com tal fanfarra e, não se contendo, perguntou aos bicharocos ruidosos qual o motivo de tanto banzé. Mestre Grilo, escandalizado com a intromissão da abóbora, que a seu ver, mais não era do que uma mona preguiçosa, insultou-a, dizendo-lhe que deveria unir a sua voz aos demais, para chamar o Sol, para que não se demorasse atrás dos montes e lhes trouxesse alegria, calor e claridade. A abóbora, que apenas queria dormir o seu soninho descansado, recusou, ofendendo Mestre Grilo. E, em coro, sapos, ralos, rãs, cigarras e grilos, continuaram a chamar pelo Sol. Embalada pelo chinfrim da noite, a abóbora voltou a adormecer.
No dia seguinte, o Senhor José Barnabé Pé de Jacaré, dono da fazenda, e sua mulher Feliciana Lauriana, vieram pela manhã dar a habitual volta ao quintal. Admirados com o tamanho da abóbora, trocaram palavras de admiração e traçaram o destino para o enorme fruto. Enquanto o Senhor José Barnabé a queria bem madura, exposta no telhado, para a semente, Feliciana Lauriana sonhava com um belo caldo de abóbora.
Mestre Grilo, que ouvira a conversa, saiu da sua lura e, com ar zombador, interpelou a abóbora, dizendo-lhe que acabaria na panela de Dona Feliciana Lauriana. Porém, a abóbora preguiçosa, outra coisa não fazia senão dormir e crescer. Nada ouvia e crescia, crescia…. Tanto crescia que ameaçava soterrar Mestre Grilo na sua lura. Assustado, o grilinho decidiu um dia chamar por ela. A muito custo conseguiu despertar a dorminhoca do seu sono profundo. Apesar do mau feitio da abóbora, que muito pregada estava no sono, Mestre Grilo disse-lhe que assim a crescer perdia a graça toda, pois uma abóbora quer-se maneirinha. A abóbora, indignada, insultou Mestre Grilo, dizendo-lhe que, se a obrigação do grilo era cantar e tocar, a dela era dormir e crescer, tanto mais que o seu objectivo era ir parar ao telhado do Senhor José Barnabé para ficar para a semente. Mestre Grilo aproveitou para escarnecer destas palavras, dizendo-lhe que o seu destino seria acabar na panela. Uma vez mais, e apesar das palavras desdenhosas do grilo, a abóbora adormeceu profundamente sem dar fé de nada à sua volta.
Mestre Grilo, cujo lar via ameaçado pelo crescimento desmesurado da aboborona, decidiu consultar os seus parentes para se ver livre dela. Convocou uma reunião de insectos, expos o seu problema e pôs todos a meditar na melhor forma de se verem livres da abóbora. A cigarra, esperta e espevitada, questionou Mestre Grilo relativamente ao motivo de tal conflito com a vizinha, tendo o grilinho admitido ter por ela uma implicância devido ao facto de ter sofrido uma grande desilusão: da flor doirada da aboboreira nascera um monstro preguiçoso. Também a abelha interveio, concluindo com palavras sábias, que o conflito entre Mestre Grilo e a abóbora giganta resultava dos infindáveis contrastes entre ambos: enquanto Mestre Grilo era vivo, espiritual, pequenino e se desfazia em cantorias, a abóbora era uma preguiçosa que só sabia comer e dormir.
Analisado o conflito entre vizinhos, o sapo, que assistira silencioso à reunião, sugeriu que se falasse com a toupeira para que esta roesse as raízes da aboboreira. Encarregou-se de falar pessoalmente com ela. A toupeira aceitou o trabalho e cumpriu-o com primor.
Naquela manhã, os insectos aperceberam-se de uma súbita mudança no tempo e, prevendo uma grande chuvada, escapuliram-se para as suas tocas, a tempo de se abrigarem da tempestade que se abatera sobre a fazenda. Relâmpagos, trovões e uma grande chuvada fizeram alguns estragos nas culturas do Senhor José Barnabé, o qual, preocupado fitava o seu quintal. De súbito, com olhos incrédulos, José Barnabé viu a abóbora menina a ser arrastada pela enxurrada. Viu-a a cair à ribeira e ser arrastada pela corrente das águas. Em pânico, seguiu aos saltos o percurso feito pela abóbora que, embalada pelo movimento das águas, dormia e de nada dava fé. Só acordou ao embater ruidosamente no rodízio de um moinho.
Em cima, na casa das mós, o moleiro e a moleira saltaram assustados com o tombo da abóbora. De rompante, a moleira foi ver o que se passava e, para seu grande espanto, viu com olhos sorridentes, uma enorme abóbora, atrancada nas penas do rodízio. O moleiro que, logo de seguida, desceu as escadas, também ficou embasbacado com a visão da gigantona. Apressaram-se a içar a abóbora, que abrira uma brecha, ao bater no rodízio e, de imediato, regalados prepararam a panela para confeccionarem um belo caldo de abóbora.
Entretanto, passada a trovoada, Dona Feliciana Lauriana foi ao quintal. Como não avistou a abóbora, pôs-se a chamar pelo marido. Sem resposta, desatou a correr e foi encontrar o marido, desolado, à beira do rio. Concluíram, resignadamente, que a abóbora nem tinha ido parar à panela de Dona Feliciana Lauriana nem ficara para a semente, como era desejo de seu marido.
Mestre Grilo, ao saber do fim da abóbora, que sempre fora parar à panelinha, não à de Feliciana Lauriana, mas à da moleira, resolveu os seus problemas de má vizinhança. E ao ver-se livre da giganta, cantou, sem conter a sua alegria, para todos os insectos da região. É que, da catástrofe de um dia de Verão, surgiu a inesperada solução.
As personagens:
As personagens principais deste conto são, sem dúvida, o Mestre Grilo e a Abóbora Giganta. O primeiro é um insecto espiritual e considera-se um poeta. É talentoso, vivaço, cheio de convicções, despreza a sua vizinha e tudo faz para se ver livre dela. É uma personagem sensível à beleza, entregue à inspiração, que adora alegria e diversão e passa a vida a cantar. Tem a cumplicidade dos vizinhos e dedica-se a engendrar um esquema para tirar a abóbora do seu caminho. A abóbora adora dormir e crescer. Não gosta de algazarras e é bastante passiva. No decorrer do conto, cai na armadilha do grilo e seus cúmplices, mas sempre a dormir, a sua missão. Não é muito dada às amizades, mas é vaidosa, pois pretende ficar no telhado do dono a secar para a semente para ser vista por todos. É uma preguiçosa inactiva, mas concentrada no seu objectivo: crescer.
As personagens secundárias são o Senhor José Barnabé, dono da fazenda, e Feliciana Lauriana, sua mulher. São dois agricultores dedicados aos ofícios da lavoura, que tentam levar, cada um, a sua posição face ao destino da abóbora, por diante. A cigarra também tem um papel secundário na história. É espevitada, esperta e tem opiniões certeiras sobre as outras personagens. É uma personagem com uma certa visão dos factos, que não se detém apenas no superficial. O sapo, também com um papel secundário, é inteligente, engenhoso e prático, pela solução que apresenta ao seu vizinho grilo. A moleira e seu vizinho também intervêm na história em segundo plano. São duas personagens um pouco broncas, mas sortudas. Acima de tudo são dois camponeses bastante populares.
Os outros insectos são personagens figurantes, que ajudam a compor o cenário onde decorre a acção.
O tempo e o espaço:
A acção decorre no início do Verão, na fazenda do Senhor José Barnabé. A acção decorre durante alguns dias, um dos quais atingido por uma tempestade de Verão, fundamental para o decorrer da acção. Inicia-se perto da lura do grilo, passa pelo ribeiro e pelo moinho e culmina novamente na fazenda.
O tema:
Este conto tem como tema a vida campestre de um insecto e de um fruto. Foca o conflito de vizinhança entre ambos e perspectiva-os como personagens antagónicas. O autor, Aquilino Ribeiro, dá vida às personagens, personificando-as com graça.
Ana Paula Santos
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